Acabei há algumas horas de assistir a uma cena familiar de entre pais e filho no interior do espaço público dum supermercado, que dalgum modo me remeteu para o meu pessoal e colectivo tempo infantil próprio, ainda que de entre o pessoal e o colectivo existam tantas infindas variantes quanto a personalidade e experiência de vida de cada qual, incluindo a família, a comunidade, etc., em que se nasce-se e cresce-se; sendo que no limite e se indo à subtileza dos pormenores dessas variantes, inclui por exemplo que mesmo de entre irmão gémeos a personalidade ou a experiência de vida destes jamais será exactamente igual. A partir de que entrando no meu tempo infantil tenho de dizer que as crianças eram positiva e/ou absolutamente subvalorizadas, como seja em que das crianças pouco ou nada mais se espera para além de que fossem gordinhas e obedientes, dalgum modo que estivessem, mas não fossem aquém e além do que lhes fosse ordenado de cima para baixo e/ou de fora para dentro _ de resto ao meu tempo infantil havia criação e não educação, pois que isso da educação veio posterior e gradualmente. No caso tão gradualmente que passadas mais de três décadas sobre o meu tempo infantil, parece que ainda há (muitas) famílias em que a criação importa mais que a educação, como seja em que manter os próprios filhos organicamente sobreviventes e mas incondicionalmente obedientes é mais que suficiente em certas famílias, como tal em inversa alternativa a filhos (pró)vital e autonomamente plenos. Em que continuando no meu tempo infantil, por exemplo perante acontecimento negativo ou desastroso cuja autoria não fosse imediata, constatável ou absolutamente comprovável pelo colectivo familiar ou social, mas desde que com crianças por perto, em especial quando por exemplo de entre crianças e adultos estavam então socioculturalmente instituídos uns preconceituosos/discriminatórios princípios, meios e fins, como, entre outros, os de que: “onde há moços/crianças não se culpam homens/adultos” ou ainda: “o que é que mais se há-de esperar de moços/crianças do que desastres, erros e em suma mal!...”; sequência de que salvo as devidas excepções, de resto por mais que uma criança reivindica-se a sua inocência com relação a algo negativo ou desastroso não seria acreditada e em certos casos até seria alvo de tão mais redobrado castigo quanto mais reivindica-se inocência, pois que mais uma vez e salvo as devidas excepções, de resto a norma geral era mesmo a de que "de crianças moços, não se podia nem devia esperar nada de positivo, vulgo bom...", até porque resumidamente criança não tinha querer, pensar ou sentir próprio, aquém e além da mais orgânica necessidade de subsistência e/ou então que as múltiplas hierarquias superiores/adultas ditassem por si sós, aquém e além da verdadeira realidade infantil, de entre o que salvas excepções que confirmavam a regra, de resto e norma geral: jamais se duvidava da palavra dum adulto face à palavra duma criança, de resto à imagem e semelhança do que sucedia de entre adultos de estatutos sociais ou de género diversos, como no estatuto social duma pessoa rica sobre uma pessoa pobre ou no estatuto de género com o elemento masculino _ salvo seja _ sobre um elemento feminino, etc.. Resumidamente em que, no caso concreto, uma criança devia “respeitinho”, vulgo incondicional obediência aos pais e no limite aos mais velhos/adultos modo geral, com acréscimo de múltiplas dimensões estatutárias hierarquizadas face umas às outras, como por exemplo no estatutário contexto de mais ricos sobre mais pobre, de entre ou sob o que o caso duma criança pobre coincidia com basicamente ser nada e ninguém, por si só, aquém e além de sob uma múltipla infinidade de estatutárias hierarquias superiores. Dito isto passemos à essência prática:
Como comecei por dizer logo no topo deste relato: esta manhã no interior dum supermercado, enquanto eu apreciava um determinado artigo, mesmo enfrente a mim circulava uma família: mãe, pai e filho. A mãe e o pai caminhavam à frente do filho que os seguia, no caso com o filho a empurrar o carrinho das compras, cujo filho aparentava ter uns sete ou oito anos, do género de estar em idade escolar mas não mais além do primeiro ciclo. Que seguramente em nada disto eu haveria atentado para além dum reflexo momentâneo e muito menos memorizado a presença desta família ali, não fosse o facto de quando no circunstancial momento em que a mesma circulava ali mesmo à minha frente, com o filho a empurrar o carrinho das compras atrás dos pais que seguiam cerca dum metro à sua frente, quando eis que de repente o pai parou para ver algo e alegadamente tendo-se também o filho distraído com algo, este último acabou por não ver o pai parar e embateu no mesmo com o carrinho das compras, desde logo num embate acidental e sem maiores consequências do que um carrinho de compras dirigido lenta e compassadamente por uma pessoa, no caso uma criança que embate noutra pessoa, no caso adulto e pai da própria criança. Só que a reacção do pai foi a de se voltar imediatamente para o filho com a mão no ar e dizendo: _ estava quase em dar-te uma lambada já aqui. O filho reagiu de imediato e de resto com uma expressão bastante humilde e cabisbaixamente submissa dizendo: _ Pai desculpa foi sem querer! Mas o pai impassível continuou: _ larga já o carro, não mexes mais no carro! O filho voltou a insistir: _ Pai, mas desculpa foi sem querer. Mas o pai em conjuntural companhia da sua suposta esposa e eventual respectiva mãe da criança, ainda que no caso do elemento feminino adulto a manter-se sempre passivo e silencioso face aquela situação, ambos os adultos voltaram então costas à criança, suposto filho de ambos, e continuaram simplesmente em frente, como que seguros de que o filho os seguiria, agora com o pai a dirigir o carrinho das compras, enquanto o filho cabisbaixo se deixou ficar uns dois metros para trás, seguindo então os pais, mas já sem a responsabilidade de dirigir o carrinho, encostando-se sim a uma das laterais do corredor de supermercado, caminhando agora com ar envergonhado e algo perdido, como que abobado, em especial para uma criança já algo crescida e que não tinha em absoluto aspecto ou atitude de criança rebelde ou irrequieta, bem mesmo pelo contrário, o que numa primeira instância suscitava solidariedade, tanto mais quando e enquanto ao mesmo tempo com uma das mãos passou a percorrer delicadamente a extremidade da prateleira de supermercado, como que se a acariciar esta última, o que eu interpretei como numa espécie de subconsciente carícia que necessitasse de e para si mesmo. Por mim não soube mais desta família, até porque, de entre nós, cada qual seguiu o seu respectivo caminho, mas de imediato aquela cena remeteu-me dalgum modo para o meu próprio tempo infantil, designadamente em que as crianças não tinham qualquer valor, aquém e além do que os pais ou os adultos lhes quisessem ou lhes conviesse dar-lhes ou impor-lhes, como seja em que o repetido, envergonhado, cabisbaixo, justificativo e humilde pedido de perdão daquela criança ao próprio pai, nem sequer foi alvo da mais ínfima atenção por parte deste último _ seguramente porque este último estava na sua própria “onda”, que no caso nem de perto nem de longe incluía positiva/educativamente o próprio filho, ao menos aquém e além de incondicional obediência deste último para com o próprio pai, por si só com base na vital ou subsistente dependência orgânica do filho face ao/s pai/s.
Sequência de que não tendo eu conseguido esquecer a cena em questão, com base naquela família, naquele supermercado, me levou ainda a interpretar um pouco mais a atitude daquele pai sobre o próprio filho, como já referido atrás, tomando por base a minha própria infância para onde por si só a cena daquela família me remeteu enquanto tal. No caso levando-me a interpretar a atitude do pai como se este espera-se perfeição por parte do filho, designadamente como se este último jamais pode-se ou deve-se chocar com o carrinho no próprio pai, que por si só parou repentinamente à frente do filho e em que se o filho não reparou na repentina paragem do pai, o facto é o que o pai também não levou minimamente em conta que o filho vinha logo atrás com o carrinho das compras. O que também à imagem e semelhança do meu tempo infantil, me levou ainda a concluir na incondicional razão do pai (mais velho, adulto) sobre o filho (mais novo, criança) e respectiva incondicional obediência deste último sob o pai, dado que para aquele pai e naquelas circunstancias parece que só o filho errou e segundo tudo indicou como que com um erro sem qualquer margem para desculpas. Ainda que se o pai confiou inicialmente no filho para o deixar dirigir o carrinho das compras, mas depois não perdoa ou sequer atenta no pedido de perdão do filho face ao mais mínimo erro em sequência da direcção desse mesmo carrinho por parte do filho, como se do filho não se pudesse esperar algo mais ou melhor do que a imperfeição dum "imperdoável" erro como aquele de chocar acidentalmente com o carrinho contra o pai, mesmo que com comparticipação do próprio pai para com esse mesmo erro do filho; me leva ainda e mais uma vez em consonância com o meu próprio tempo infantil a concluir tudo como um imenso e disfuncional paradoxo dos pais/adultos sobre os filhos/crianças, que era e parece em certos casos continuar indefinidamente a ser o de que se exigia/exige perfeição de quem, como as crianças, ao mesmo tempo não se esperava/espera algo mais ou melhor que imperdoável imperfeição. Como que se no caso aqui em questão o pai dissesse ao filho: deixei-te dirigir o carrinho das compras porque supus que tu (filho) serias perfeito a ponto de não cometer um erro imperdoável, a partir de que tendes imperfeitamente cometido esse erro imperdoável, o menor castigo possível é não voltares a dirigir o carrinho das compras, porque de ti (filho/criança), enquanto tal e para o caso, só se pode esperar imperdoável imperfeição. Genérica base e sequência esta que assumia e/ou assume particular relevância ao nível rural, provinciano e de pró subserviência a uma infinidade de estatutos superiores, como nos casos do estatuto maternal/paternal de pais sobre filhos, do estatuto etário de mais velhos sobre mais novos, do estatuto social de mais ricos sobre mais pobres e assim sucessivamente, sendo que os estatutos em causa não têm de estar necessária e naturalmente errados enquanto tais, agora muitas vezes e em muitos casos os princípios, os meios, os objectivos inerentes aos mesmos e a forma como os mesmos são exercidos na prática é que podem ser errados e estar positivamente em causa; especialmente enquanto estes últimos derivados de quase meio século de ditadura política e social em que eu mesmo ainda nasci e comecei a crescer, estando eu presentemente com idade para por exemplo ser pai (também) de filhos com a idade daquela criança de hoje de manhã no supermercado _ mas que em absoluto não sou.
Digo eu afirmativamente por mim mesmo a partir daqui que, segundo os casos, haverá diversas formas de educar os próprios filhos (pró) positiva, autónoma, responsável e consequentemente para a vida, mas a forma inerente ao caso a que aqui aludo não é seguramente uma dessas formas, porque a mesma leva desde logo e acima de tudo à cega e incondicional humilhação do próprio filho, tanto mais e pior se em publico, sem ainda a mais mínima correcção ou chamada de atenção pela positiva por parte do pai, inclusive sem que o pai atende-se o mais mínimo aos humildes e diria mesmo submissos pedidos de desculpa/perdão por parte do próprio filho, tudo ainda com impassível ou quiçá também submissa atitude maternal. Sem em qualquer caso esquecer a parcial responsabilidade do próprio pai para com o acidental facto do filho lhe ter acidental e inconsequentemente tocado com o carrinho das compras. A partir de que salvo a personalidade do próprio individuo, no caso infantil, em associação à mais globalmente diversa e conjuntural sequência das circunstancias da vida intra e extra familiares, de resto e à partida com base em atitudes como as do pai aqui em causa, não se pode esperar ter positiva e/ou autonomamente grandes cidadãos e acima de tudo positivamente grandes seres humanos adultos. Sequência de que enquanto tal e como melhor das hipóteses ter-se-á cidadão/seres humanos essencialmente subservientes, obedientes e rudes, em detrimento de cidadãos/seres humanos positivamente críticos, humildes e civilizados. Tudo como que num interminável e sequencial ciclo vicioso que parece querer perdurar em muitos contextos socioculturais e familiares, mesmo após já mais de quatro décadas de vivência e educação dita de civilizacionalmente democrática, ainda que esta última directa e referencialmente derivada de outras mais de quatro contrastada(*) décadas de ditadura que reiteradamente em resumo final esta última incluía o imenso e disfuncional paradoxo dos pais/adultos sobre os filhos/crianças, que era e como reflecte o caso aqui em questão parece continuar indefinidamente a ser o de resumidamente se exigir semi-implícita ou explicita perfeição de quem, como das crianças, só se espera imperfeição. Até porque toda a gente erra, tanto mais se uma criança que está em fase de aprender objectivamente tudo acerca da vida, pelo que quando um pai não perdoa nem corrige o mais ínfimamente o filho pela positiva, inclusive aqui para o caso e em certa medida devendo o próprio pai compartilhar responsabilidade face ao erro filho/criança, mas não faz e pelo contrário até tem uma reacção que eu diria em grande medida irracional, então é porque dessa criança o pai espera ou exige o impossível, como seja constante e permanente perfeição _ o que para o caso passava pela hipótese do filho jamais lhe poder ter embatido acidentalmente com o carrinho de compras do supermercado. Pelo que só restou a este pai e a todos os equivalentes passar/em a esperar permanente imperfeição do/s próprio/s filho/s criança/s e por isso se não confiando o próprio pai (pró) positiva ou perfeitamente no filho ainda criança, como no presente caso em questão, acabou retirando-lhe inclusive de forma algo violenta e nada didáctica a por parte do filho voluntária e prazerosa responsabilidade de dirigir o carrinho das compras de supermercado. Levando a criança a uma espécie de pró positiva e autónoma inanição própria face à vida e/ou por si só face ao/s próprio/s pai/s, como no caso da criança aqui em causa que ao menos momentaneamente ficou dalgum substancial modo abatida e a caminhar sozinha, acariciando as frias prateleiras de supermercado.
Ah! E sendo claro que as crianças, até enquanto dependentes dos pais e muito modelarmente plásticas em si mesmas, também em grande medida esquecem e relevam o que as magoa, mas há limites... desde logo limites para que as negativas ou pelo menos retorcidas consequências do paradoxo aqui em causa não se revelarem a mais curto, médio ou longo prazo na própria vida adolescente e adulta derivada duma qualquer criança, por si só, face aos próprios pais e em resumo final face à própria Vida modo geral e enquanto tal.
Ah! E sendo claro que as crianças, até enquanto dependentes dos pais e muito modelarmente plásticas em si mesmas, também em grande medida esquecem e relevam o que as magoa, mas há limites... desde logo limites para que as negativas ou pelo menos retorcidas consequências do paradoxo aqui em causa não se revelarem a mais curto, médio ou longo prazo na própria vida adolescente e adulta derivada duma qualquer criança, por si só, face aos próprios pais e em resumo final face à própria Vida modo geral e enquanto tal.
VB
(*) Estando eu também em crer que se passou do oito (8) para o oitenta (80) no que por concreto exemplo a educação infantil respeita, na medida em que face às minhas origens infantis, sob muitos aspectos mo tempo actual parece ter-se passado da sub valorização para a sobre valorização infantil/juvenil, em alguns casos com consequências não menos nefastas, ainda que diversas às relacionadas como caso descrito atrás. Mas enfim, isso é por si só assunto para um outro eventual futuro texto!!!