domingo, outubro 21, 2012

Uma história viva

            Entre a minha mais ingénua e inocente infância e a minha mais utópica e onírica adolescência, o meu percurso interpessoal, social e curricular escolar tornava-se-me cada vez mais um sofrível, degradante e decadente pesadelo.

            Eis quando, circunstancial ou providencialmente um determinado dia vejo uma ambulância dos bombeiros locais a chegar à escola, com os sinais luminosos de emergência ligados. Que tão só pela curiosidade juvenil, mas também pelo fascínio que a vida de bombeiro à altura exercia em mim, inclusive como possível positiva compensação para a minha degradante e decadente vivência escolar; após a ambulância parar no interior do recinto escolar, acabei por me colocar num ponto estratégico (piso superior do edifício escolar) com vista para a operação de socorro a que os bombeiros iriam proceder. Ainda que num momento em que a maior parte das turmas estavam em aulas e sem que previamente se visse em redor qualquer movimento ou ocorrência especial, que chama-se particular ou mesmo absolutamente a atenção, salvo a presença duma ambulância dos bombeiros em sinal de socorro. O facto é que os bombeiros subiram ao piso superior, carregando uma maca para transporte de doentes e sob indicação duma funcionária escolar, dirigiram-se à sala de professores. Enquanto eu fiquei expectante no meu estratégico ponto de observação, que abrangia visualmente todo o percurso percorrido pelos bombeiros, desde a ambulância até à sala de professores, para onde os mesmos se dirigiram e acabaram por entrar. 

            Alguns minutos após, da sala de professores os bombeiros saíram carregando alguém prostrado sobre a maca e ao aproximarem-se do estratégico ponto em que eu me encontrava, constatei tratar-se duma aluna. Identifiquei imediatamente a aluna em causa, por natural e frequentemente a ver no recinto escolar, ainda que a mesma não fosse da minha turma e eu jamais tivesse tido qualquer directo contacto pessoal com ela ou reparado na própria, mais do que como uma: bela, esbelta e adolescente colega escolar do sexo oposto, mas sem mais consequências do que genericamente outras belas colegas me pudessem suscitar e efectivamente suscitavam tão natural e espontaneamente, quanto na esmagadora maioria das vezes: momentânea e circunstancialmente. Mas naquele momento e em associação a uma tão leve quanto indelével prévia noção que eu já tinha da mesma, quem eu vi prostrada sobre a maca de socorro dos bombeiros, foi uma inspiradora mistura de angelical candura e de principesco encanto, nos seus reluzentes fios de cabelo naturalmente dourados, na sua pele clara, no seu ar sereno, no seu corpo que eu já antes identificara como esbelto e mas naquelas circunstancias me pareceu acima de tudo franzino e frágil, nos seus belos e sensuais traços do rosto que por referencial definição passei mais tarde a identificar ao nível dum determinado estereotipo de universais musas da sétima arte*, que me reservo o direito de não nomear aqui em concreto. E eu que jamais acabara de entender a sócio/cultural mistificação masculina das louras, se essa mistificação fazia sentido, ela estava agora ali no seu máximo esplendor. A partir de que o facto é que se já havia algum tempo que eu vinha acalentando o sonho de ser bombeiro, aquém ou além de qualquer romantismo ou impulsão juvenil, também como eventualmente positiva e útil compensação para o meu crescente desencontro com a vida inter pessoal, social e curricular escolar e até por isso com a própria vida em geral; naquele momento eu sonhei e desejei mais do que nunca estar ali na pele dum daqueles bombeiros que estavam a socorrer aquela cândida e angelical, mas também atractivamente esbelta e sensual figura, para poder ser também ou essencialmente eu a socorrê-la _ ao estilo de herói romântico.
        
            De entre o que nasceu uma minha auto consciência de “traição” própria, entre até então desejar ser bombeiro em sequência da minha original vivência e educação sócio/cultural e familiar própria, essencialmente pró incondicional obediência e entrega a Deus, à Pátria, à Família e ao próximo; para o que ser bombeiro, ao menos a meu ver e sentir como que condensava em si mesmo e pela positiva, esse culto de incondicional obediência e de universal entrega à vida e ao próximo. Só que perante aquela rapariga eu não quis ser bombeiro para me entregar e salvar incondicional e universalmente sem olhar a quem, naquele caso eu quis e desejei ser bombeiro ali mesmo e naquele momento, para ajudar a “salvar” aquela Musa, em concreto. Diria que foi o fim do meu mais puramente ético e moral sonho de ser bombeiro e o início dum paradoxal e maniqueísta conflito intrínseco em mim. Designadamente naquele momento senti-me profundamente impotente, perante o facto de não ser bombeiro já ali e mas especialmente por não poder fazer positivamente algo por aquela rapariga, ao menos num momento de circunstancial debilidade da mesma, já que com base na crescente imagem negativa ou positivamente inócua de mim mesmo, em sequência do meu esforçado, sofrível e decadente percurso interpessoal, social e curricular escolar e de tudo o que me estava a levar ao mesmo ou do mesmo derivava para com e sobre mim, não me sentia à altura de contribuir positiva e correntemente para a minha própria vida e por inerência para a vida de quem mais quer que fosse, muito menos se para a vida duma bela e à partida inteligente rapariga _ até porque há altura o género feminino tinha crescente sucesso escolar por si só e/ou sobre o (meu) género masculino _, cujo meu desejo de viver e de ser feliz, se fundia agora com desejar a vida e a felicidade da mesma. Ainda que se à altura eu fosse bombeiro, muito possivelmente não me teria calhado a mim ir ali socorrê-la e por isso poder perder o mágico significado que ela agora passava a exercer em mim. Além de que para mim ser bombeiro equivalia a não continuar a vida escolar, o que respectivamente levava a ter de me afastar do meio e contexto existencial/escolar daquela rapariga, o que em sequência obstava a que eu pode-se procurar equivaler-me positivamente à mesma, ao menos ao nível escolar.

            Imediata sequência do que recobrei muito positivo animo vital e até pela primeira vez consegui encontrar positiva e objectiva motivação própria relativamente à escola, ainda que não a suficiente ou ao menos a tempo de evitar uma ultima intransição de ano lectivo, após outras três anteriores intransições, com consequente e diria mesmo tardia quebra da confiança familiar(dos meus pais) em relação a mim e ao meu percurso escolar, levando-me a abandonar a escola sem fama, nem glória; mas com um espírito positivo, inspirado também ou essencialmente pelo indelével significado daquela rapariga em mim. A pontos de por exemplo ter passado a desejar permanentemente regressar à escola, até porque entretanto a vida ainda que só virtual e distantemente havia-me apresentado, precisamente possibilidades vitais e/ou profissionais, para as quais os estudos escolares eram indispensáveis, desde logo e para não entrar em demasiados ou supérfluos pormenores aos respeito, diria tão só que os estudos escolares são ou eram à altura globalmente indispensáveis, no mínimo, para a possibilidade de livre e natural escolha profissional de cada qual; mas dado o meu percurso escolar próprio, essencialmente esforçado, sofrível, degradante e decadente, mais a minha incultura de liberdade e de autonomia própria, passou a só me valer a pena fazê-lo (voltar à escola) em nome daquela rapariga ou do positivo significado da mesma em e para mim _ a pressupor até alguma eventual pró obsessiva/patogénica obstinação da minha parte!

            Seja que conclusivamente entre outras pré e pós sequências da minha vida, mas em especial após confirmação do meu marcante e conclusivo fracasso escolar e dalgum respectivo modo, do meu global fracasso pessoal ou existencial próprio modo geral, já sob mítica influência de dita rapariga na e para a minha vida; subsequentemente com referencial âncora entre o que paradoxal e antagonicamente eu deixava ou não terminava de ser e de significar positivamente por e para mim próprio; versos o que aquela rapariga(*) suscitava positivamente em e sobre mim, como inclusive seja uma minha permanente e “apaixonada” necessidade de regressar à escola, sem no entanto e impotentemente eu o conseguir fazer por mim mesmo; até porque entretanto e além doutros substanciais factores como perda de confiança interpessoal e social própria, eu sabia ou sentia que também tinha deixado muitas bases curriculares para trás e não poderia continuar em frente como se nada fosse; base em que acabei intermédia e autonomamente, por também apaixonada, platónica, pró vital, sanitária e subsistentemente, começar a ler inclusive para não perder contacto com o melhor exterior, quando eu sentia dificuldade ou mesmo incapacidade para lidar interactiva e funcionalmente com esse mesmo melhor exterior; sequência de que algum respectivo dia, numa determinada circunstancia acabei por acto espontâneo começar a escrever para no limite tão só necessitar sobreviver, mas desde logo para pró vital, sanitária ou subsistentemente exteriorizar em sequência de muito interiorizar, designadamente através da leitura.
           
                                                                                   VB

            (*)... um dia disse-lhe que gostava muito dela e não lhe menti. Desde logo desejar-lhe intimamente o melhor da vida, aquém e além de mim, tendo-a eu como objecto de desejo, podendo ser-me fatal, no entanto foi-me dalgum modo providencial _ em especial quando lhe desejei positivamente a ela o que não me conseguia desejar a mim mesmo e procurando honrar esse meu sentimento para com ela isso "salvou-me" dalguma forma! Só não pude, nem posso dizer-lhe que a Amo, porque dependente ou independentemente de sermos interactiva e funcionalmente compatíveis de entre nós ou não, o facto é que isso do Amor só vem ou existe em sequência de relacional interacção e/ou de conhecimento profundo do outro, mas em que até por tudo o de mim perante a mesma e o exterior modo geral, pelo melhor e pelo pior, para o bem ou para o mal, salvo raros e pontuais momentos ou excepções, por norma eu próprio jamais estive interactiva e funcionalmente disponível _ para ela ou para quem mais quer que fosse! Até porque por tudo o de mim perante e para com a mesma, procurei criar para mim e vender para o exterior, uma imagem ou um ideal de mim mesmo, que até pelo que isso continuamente me exigia e/ou por meu respectivo receio de não conseguir corresponder a prazo ou permanentemente na essência a essa imagem ou a esse ideal de mim próprio, acabou tudo isso afastando-me ainda mais interactiva e funcionalmente, quer dela quer do exterior modo geral.

            Nota: O transacto texto é o desenvolvimento duma pequena história, a exemplo de mais dois outros textos, que escrevi e enviei para um determinado espaço radiofónico de seu titulo: História devida, à altura no ar na rádio pública nacional (RDP), enquanto espaço dedicado a histórias escritas e/ou vividas pelos respectivos ouvintes radiofónicos. 

            Ainda que e/ou até porque sendo o presente texto a base duma história algo mais extensa por si só, até por enquanto particular história como marcante parte da global história da minha vida, que em si mesma tem tanto de prática e objectivamente desinteressante, quanto até por isso terá algo de interpretativa e subjectivamente interessante _ mas que em qualquer caso não cabe descritivamente no presente contexto!

            Inclusive respectivo texto de que tenho uma versão muito mais extensa e com potencialidades de indefinida edição, registada com direitos de autor na IGAC.

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