quinta-feira, janeiro 28, 2016

Abençoado

Tomando por base a frase: _ "A dificuldade humana de gostar de gatos está directamente ligada à incapacidade de Amar sem dominar", que neste último caso li numa partilha alheia a mim e anónima com relação a/o autor/a original, no Facebook. A partir da que foi-me suscitado escrever ou mais bem contar a seguinte história real passada também comigo próprio como protagonista e que foi a seguinte:
Antes de mais, sem natural prejuízo de quem assim não seja, eu pessoalmente adoro gatos.
A partir de que da última vez que fiz análises clínicas, quando entrei na sala de espera do respectivo laboratório já lá estavam dois outros utentes, mais duas funcionárias. E acto quase imediato a eu entrar e ter cumprimentado todos com um "bom dia" a que fui genericamente correspondido, eis que a despeito dum gato que se passeava na varanda do prédio em frente à janela da sala de espera do laboratório de análises clínicas, um dos utentes presentes começou com um convicto e até algo veemente discurso do literal tipo: _ "não gosto nada de gatos, são maus bichos; são perigosos; só fazem o que querem; e são um dos piores predadores que existem; tenho lá em casa um cão que ensinei a ir aos gatos e gato que ele agarre é gato morto, o último que ele agarrou partiu logo pelo meio!"
Dado que o senhor não parecia falar com alguém em concreto, mais bem falando, alto e bom som, para todos em geral, logo e dadas as circunstancias eu não resisti a pedir licença a saber se podia meter a minha "colherada" ao respeito. Ao que o até então unilateral orador, talvez pensando que eu ia concordar com ele, me respondeu, inclusive num tom e numa postura algo altiva: _ "claro que sim!"
E sem mais demoras comecei: _ "Isso que o senhor acaba de referir pelo pior com relação aos gatos aplica-se a nós humanos de forma multiplamente redobrada. Desde logo no que respeita a predação, pelo menos que eu saiba os gatos só matam básica e essencialmente para se alimentar, já o ser humano mata para se alimentar; mata por gula; mata por prazer; mata por desporto; mata por luxo; mata por vaidade; mata por preceitos e por preconceitos; mata por ignorância; mata por arrogância; mata por ganância; mata por soberba; mata por medo; mata por superstição; mata por tradição; mata por desprezo pela vida alheia/diversa; mata porque "sim" e porque "não"; mata por "tudo" e mata por "nada"; inclusive mata, imagine-se, por """amor"""!" (*)
O senhor escutou-me atenta ou talvez estupefactamente e quando finalizei o mesmo não discordando mas tão pouco concordando comigo, limitou-se a corresponder-me com uma história algo desconexa que eu nem sequer memorizei de incoerente e contextualmente desajustada quer era, baseando-se em alguém que ele orador conhecia e que alguma vez esse outro alguém teria dito ou feito algo relacionado com caça, mas que em qualquer caso não fazia grande ou qualquer sentido para o contexto. E acto imediato continuou o orador ainda em monologo, no caso voltando-se para a funcionária que estava mais perto de si, que segundo parece era sua conhecida dizendo algo como: _ "sabe eu costumo ir almoçar à marisqueira de tal e de qual e outro dia encontrei lá fulano de tal!"
Em momento algum, alguém dos restantes disse ou fez alguma coisa, salvo o outro utente que esboçou de si para si um sorriso tímido e a funcionária sua conhecida que correspondendo-lhe com relação à observação dele ter encontrado um conhecido comum lhe disse: _ "ai sim!?". Enquanto tudo isto eu fiquei a pensar com relação ao orador: _ "quem será esta ave rara(?) _ no pior sentido do termo, de entre outras que por ai há".
Como o orador em questão estava à minha frente na sequência de atendimento clínico-analítico, acabou por naturalmente também sair primeiro do que eu, no caso despedindo-se das restantes pessoas presentes, que entretanto e segundo recordo já incluía mais dois ou três utentes, além das duas funcionárias, mas não se despediu de mim, de resto nem me olhou à saída, tanto mais quando eu era o que estava mais próximo da porta; o que me levou a concluir que o mesmo havia entendido o que eu lhe havia dito com relação ao "pior predador" e que se havia sentido tocado por isso; o que nas circunstancias em causa me deixou agradado comigo mesmo e em paz com a própria vida.
E entretanto a última vez que eu reparei no gato na varanda em frente, o mesmo estava elegantemente sentado sobre o parapeito da mesma, numa pose de absoluta indiferença com relação à altura ainda significativamente alta com relação ao chão na rua em baixo e pensei: _ abençoado!
VB
(*) Claro que aqui, a frio e por escrito, acrescentei alguns adjectivos à boa meia dúzia que disse oral e espontaneamente ao senhor, odioso de gatos, na devida altura.

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